quarta-feira, 24 de março de 2010

ESPIRITUALIDADE E SUA INFLUÊNCIA NO PROCESSO DE ENVELHECIMENTO

INTRODUÇÃO
O processo de transição demográfica em Portugal e um pouco por todos os países desenvolvidos caracteriza-se pelo crescimento exponencial da população adulta e idosa, alterando a pirâmide populacional dos seus países. Actualmente o grupo etário dos idosos lidera o crescimento, facto que, até aos anos 60, este era idêntico nos vários grupos etários. Segundo o INE, a evolução registada entre 2004 e 2005 na estrutura etária da população residente em Portugal (incluindo a região autónoma da Madeira e dos Açores) revela o acentuar do envelhecimento da população, com a relação entre a população idosa e a população jovem a atingir em 2005, os 110, ou seja, mais um idoso por cada jovem em relação ao ano anterior. Este comportamento do índice de envelhecimento advém da diminuição do número de jovens e do aumento do número de idosos, tendo em consideração o decréscimo da taxa de natalidade e o aumento da taxa de emigração. A transição que vivenciamos foi acompanhada lentamente por uma maior qualidade de vida devido à melhoria das condições sanitárias, médicas, alimentares, assim como a apropriada inserção das pessoas no mercado de trabalho.
O idoso actual é social e culturalmente mais exigente que o idoso de outros tempos, onde a própria sociedade não exigia tanto uns dos outros. Assim para estabelecer uma “ponte de amizade” e suporte emocional ao idoso, este refugia-se em toda a esperança que o ajudou e continua a ajudar a potenciá-lo. A crença numa religião ou a fé e mesmo a prática da espiritualidade, não são simplesmente uma “dimensão do mágico” que substituem a responsabilidade humana. Na pessoa idosa, com todo o riquíssimo património cultural adquirido com as suas experiências da vida e sabedoria, o futuro adivinha-lhes “incerto”, levantando-se à procura incessante de segurança, disponível na sua orientação espiritual e/ou religiosa.
Com este trabalho pretendo portanto alertar para o benefício de uma orientação espiritual no desenvolvimento de um processo de envelhecimento enriquecedor. Assim os objectivos traçados que combinam o mundo espiritual e o mundo científico são essencialmente: perceber o fenómeno religioso e espiritual como forma de resposta às questões existenciais do Homem, sensibilizar para a importância da religião e/ou da espiritualidade enquanto paradigmas incontornáveis; procurar perceber a mentalidade do idoso face à religião e à orientação espiritual e compreender os benefícios da prática da espiritualidade em contexto hospitalar. Desta forma, tentarei alertar para a necessidade de uma prática holística de cuidados de uma equipa multidisciplinar, tendo em conta as diversas dimensões que nos constituem como indivíduos (biológico, social, psicológico e espiritual) e não ter em conta só a parte biológica que se multiplica em práticas de saúde.

DESENVOLVIMENTO

PARTE I: A ESPIRITUALIDADE E A RELIGIÃO

Abordagem ao conceito de Religião e Espiritualidade
O termo “religião” e “espiritualidade” são frequentemente utilizados, sem razão, como sinónimos. Convém, pois distinguir estas duas noções. Desde sempre que a religião tomou a sua influência na esfera social, quer ao nível pessoal como também público, tanto por existência ou inexistência. De facto, as características de uma sociedade que apresente uma qualquer forma de adoração do divino divergem fundamentalmente daquela que não possua religião. Actualmente, existem muitas religiões e mesmo seitas que promovem a elevação e a pacificação do Ser mais intrínseco da pessoa, influenciando a vida social e política. Os conflitos étnicos, por exemplo, geralmente têm conotação religiosa. Na Irlanda do Norte a ruptura entre católicos e protestantes não foi ainda recomposta e uma guerra pode ser também legitimada em nome de uma verdade religiosa. Por outro lado, são as religiões que concentram na sua maioria, entre os seus adeptos, verdadeiros heróis modernos na defesa da vida, na busca dos direitos humanos e na promoção da paz entre os povos.
Apesar do avanço da ciência, da técnica, da robótica, da informática, e de muitas outras áreas, continuamos a questionar acerca dos benefícios da crença em algo superior, num Deus ou na prática espiritual como seres multi-facetados que somos. A religião não é apenas um fenómeno individual, mas também um fenómeno social e cultural, que orienta a sociedade segundo as directrizes por ela traçadas, representando as respostas que a Humanidade tentou dar face às perguntas, através de um conjunto de práticas e de crenças.
Se algumas pessoas, no limiar da morte, encontram um grande amparo na fé religiosa, se as orações e os sacramentos ajudam, a verdade é que nos deparamos muitas que não têm religião, ou que vivem uma relação difícil, cheia de cólera ou de culpabilidade, com a sua religião de infância. Estas pessoas têm, não obstante, uma espiritualidade.
Assim como a religião, também a dimensão espiritual é uma dimensão importante na existência do Ser humano que dá abrigo às suas mudanças interiores, permitindo o aprofundar do seu sentido de vida. Esta pertence a qualquer Ser que se questiona perante a simples realidade da sua existência. Ela tange a sua relação com os valores que o transcendem, seja qual for o nome que lhes seja atribuído. Desde que os seres humanos apareceram na face da Terra e começaram a organizar-se na sociedade, que algum indivíduo do grupo assumia as funções de xamã ou feiticeiro. Durante muito tempo, espírito e corpo eram vistos como uma unidade, e esses líderes espirituais ensinavam que cuidar do espírito era a parte mais importante do tratamento.
De acordo com a Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos da UNESCO, de 2005, “a identidade de um indivíduo inclui dimensões biológicas, psicológicas, sociais, culturais e espirituais”. Também a espiritualidade constrói-se e relaciona-se em contextos socioculturais e históricos, estruturando e atribuindo significado a valores, comportamentos, experiências humanas, e por vezes materializa-se na prática de um credo religioso. Esta dimensão é considerada por muitos autores e mesmo pelo Ministério da Saúde como parte integrante do conceito de saúde, sendo essencial na prática holística de cuidados. De facto, a dimensão espiritual é descrita como sendo relevante na atribuição de significado ao sofrimento decorrente de uma doença crónica e também como recurso de esperança face às mudanças no estado de saúde.
A participação religiosa e a espiritualidade parecem relacionar-se assim com uma melhor saúde, uma expectativa de vida mais prolongada, uma melhor aceitação da morte e dos lutos, uma diminuição do nível de ansiedade, assim como, uma diminuição de tendências depressivas e suicidas. De salientar que apesar do conceito “religião” e “espiritualidade” serem diferentes, a religião pode ser um caminho para uma espiritualidade e uma boa saúde, mas isso não é uma regra. Assim, a adesão a uma crença religiosa pode ser uma forma de vivermos a nossa espiritualidade, mas também podemos viver a nossa espiritualidade sem religião. Depende de muitos factores, inclusive do nível cultural e da capacidade de se concentrar nas actividades espirituais.

Religião e Fé
As raízes da religião encontram-se na razão humana simplesmente. Ela faz apelo às outras fontes. Oriunda do verbo latino religare, que significa atar, unir, a palavra religião significa o acto de relegar o mundo visível com o mundo invisível, onde estão forças poderosas e misteriosas. A religião pode também ligar os seres humanos entre si, num grupo, propondo-lhes leis e valores comuns, dando-lhes um modo de crer e de agir.
É necessário, ainda, que se distinga religião de fé. A fé é a crença e a aceitação de um Ser transcendente e sobrenatural. Todavia, existem religiões que não se baseiam numa fé, como é o caso do budismo antigo. Portanto, pode haver religião sem fé, mas uma fé quase sempre se expressa num tipo de religião ou de religiões. Sob o ponto de vista de Immanuel Kant, aduzindo ao pensamento humano, afirma a existência de duas formas de religião bem definidas, alicerçadas nos interesses dos fiéis e de seus líderes: a religião da petição de favor organiza-se visando favores da divindade, não possuindo dinâmica engrandecedora para a criatura; Segundo Kant, a partir dessa modalidade religiosa, surge a fé dogmática, na qual não se exige a reflexão do fiel, mas a sua adequação mental, tendo como moldes as "verdades" estabelecidas por seus condutores; Por outro lado, a religião moral que prioriza a boa condução na vida, prescrevendo o indivíduo a tornar-se melhor. Nesse campo religioso, de antemão, se concebe um Deus que auxilia, mas ao fiel cabe empreender esforços para fazer-se merecedor da ajuda celeste. Fruto da religião moral, a fé que reflecte opõe-se à fé dogmática, prezando o Ser na sua capacidade de discernir, nunca ferindo o seu livre arbítrio, facultando-lhe o crescimento e a libertação perante as amarras da vida.

Benefícios da Espiritualidade
No fim do século XVIII começa a surgir a ciência médica, que cria uma divisão entre aquilo a que se chama de crendices e actividades “não científicas” e as explicações racionais e exclusivamente materialistas do novo conhecimento. À medida que a medicina evoluiu como ciência procurou distanciar-se sucessivamente do passado comum com a espiritualidade. Só nos últimos 10 anos é que surgiram evidências que os primeiros médicos tinham razão.
De acordo com Venâncio Pereira Dantas Filho, médico neurocirurgião, a espiritualidade envolve desde as concepções e convicções religiosas relacionadas com a vida, a doença e a morte, bem como os rituais associados, até a visão que valoriza a integridade da pessoa incluindo os seus aspectos biológicos, psicológicos, sociais e espirituais. “ Entende-se hoje cada vez mais que os problemas existenciais, que têm como pano de fundo a questão do sentido da vida, portanto, questões também de ordem espiritual e religiosa, estão associados senão com todas, pelo menos com a grande maioria das doenças psicossomáticas que acometem as pessoas e todo o mundo” afirma Dantas Filho. Aqueles que reconhecem a espiritualidade como um esforço humano para auxiliar o tratamento, sugerem que as evidencias dos estudos científicos recentes são interessantes o suficiente para justificar novas pesquisas. “ Os efeitos da espiritualidade sobre a saúde podem envolver mecanismos fisiológicos úteis além dos nossos conhecimentos actuais que, com o tempo, possam vir a ser entendidos”, acredita o autor acima citado. Muitas proposições terapêuticas para o tratamento de doenças já incluem a espiritualidade, particularmente na forma da meditação, e também como tratamento adjuvante ou alternativo para, pelo menos, diminuir a ansiedade, aliviar preocupações, dar conforto e motivação, tanto a nível domiciliar como hospitalar. A maioria dos estudos realizados acerca desta temática tem mostrado que também tem influência na diminuição de tendências depressivas, no aumento do sucesso de fertilização “in vitro”, na melhoria do curso clínico de doenças crónicas como diabetes e artrite reumatóide, na expectativa de vida prolongada, na auto-estima, no apoio emocional, esperança, bem-estar psicológico e interpessoal, ou mesmo no auxílio da recuperação de pacientes com dependência química, como por exemplo, casos de alcoolismo.
“Conhecer melhor as convicções das pessoas inclusive as de cunho religioso, fornecem mais recursos para lidarmos com novas situações que deparamos frequentemente e podem-se tornar bastante conflituosas”, completa ainda o médico neurocirurgião.

PARTE II: OS IDOSOS FACE À ORIENTAÇÃO ESPIRITUAL

Os carismas da velhice
O grupo formado por aqueles chamados da “terceira idade” abrange uma extensa faixa da população mundial: pessoas que saem dos ciclos de produção, tendo ainda grandes meios e capacidades de participação no bem comum. Ao numeroso grupo dos “Young old” (“jovens anciãos”, como são definidos nas novas categorias da velhice, aqueles cuja idade vai dos 65 aos 75 anos) vem-se juntar o dos “Oldest old” (“anciãos mais velhos”, com mais de 75 anos) e uma quarta idade cujo número tem vindo a crescer sucessivamente.
O aumento da esperança média de vida, por um lado, e a diminuição taxa de natalidade por outro, causaram uma mudança demográfica, invertendo a pirâmide das idades, tal como se apresentam à cinquenta anos atrás: o número de anciãos em constante aumento e o dos jovens em diminuição contínua. A construção da desejada sociedade de múltiplas gerações só resultará se tiver, por fundamento, o respeito pela vida, em todas as suas fases. A presença de tantos anciãos no mundo contemporâneo é um dom, uma riqueza humana e espiritual. É um sinal dos tempos que, se for plenamente compreendido e acolhido, pode ajudar o Homem de hoje a reencontrar o sentido da vida que ultrapassa os significados que lhe são atribuídos pelo mercado, pelo Estado e pela mentalidade dominante.
A velhice é uma etapa da vida, que “oferece novas oportunidades de crescimento e de empenhamento”. A «gratuidade», «memória», «experiência», «interdependência» e «uma visão mais completa da vida» são os carismas da velhice, apontados por D. António Sousa Braga, que a sociedade deveria aproveitar. A entrada na terceira idade é “um privilégio, um dom, que importa fazer frutificar para bem de toda a comunidade”. Na medida em que, com o aumento da vida média, cresce a faixa dos anciãos, “é sempre urgente promover esta cultura de uma ancianidade acolhida e valorizada, não marginalizada”. E avança: “o ideal é que o ancião fique na família, com a garantia de ajudas sociais eficazes, relativamente às necessidades crescentes, que supõem a idade e a doença”. A terceira idade também é a idade da simplicidade e da contemplação. Os valores afectivos, morais e religiosos vividos pelos anciãos são um recurso indispensável para o equilíbrio das sociedades, das famílias e das pessoas.
Os idosos e a Orientação Espiritual
É normal termos medo da morte, mas enquanto que algumas pessoas, principalmente aquelas que estão mais próximas desta etapa, ficam muito ansiosas, outras não. De acordo com Goethe, “na mocidade o Ser humano vive através do corpo e, na velhice, vive, contra o corpo”. Com esta citação, podemos ver que potenciais e forças escondidas no Homem só começam a aparecer e a desenvolver-se quando as energias corporais começam a declinar. Uma das experiências mais encorajadoras e felizes nos idosos é a consciência exponencial no triunfo do espírito, ainda quando a força física os abandone. Nas últimas décadas foi dado um especial relevo ao Ser humano como um todo, incluindo a vertente biológica e psicológica, juntando as várias vertentes como partes de um mesmo processo. Mais recentemente deu-se conta de que as dimensões humanas necessitam de uma dimensão espiritual, não necessariamente de uma dimensão religiosa mas de uma explicação para o Ser humano, uma percepção de que está inserido em algo mais amplo que o simples quotidiano. Quanto mais satisfatória for a resposta que o indivíduo tem a essa busca espiritual, mais se sentirá tranquilo ao enfrentar a morte. Todo o Homem confrontado com a iminência da morte pode ser levado a colocar a si mesmo questões de ordem espiritual, nomeadamente o sentido da sua existência.
De acordo com alguns especialistas, de uma maneira geral as pessoas interpretam todos os acontecimentos da sua vida sob uma visão espiritual e conhecer e respeitar esta interpretação é um grande auxílio para o doente e para o profissional que o assiste. Por isso, assistir espiritualmente bem o paciente é de grande contribuição para a sua recuperação ou tranquilidade.
Desta forma podemos inferir algumas características para uma espiritualidade na terceira idade: a assistência religiosa de forma a ajudar a descobrir os valores humano-religiosos da sua idade e a viver esse tempo com serenidade e com dignidade; o optimismo e o realismo onde podem encarar a realidade com clareza, coragem e esperança; a contemplação onde se faz uma caminhada interior de reflexão; a celebração das alegrias que a fase do envelhecimento atravessa; a autocompreensão de forma a aceitar e ter a consciência do processo natural da vida; e a socialização, ou seja, o relacionamento com as várias relações construídas ao longo da vida.
BIBLIOGRAFIA SUGERIDA:
  • Spirituality and aging: the health implications of religious belief and practice
  • Spirituality and clinical care
  • Spirituality, Rehabilitation, and Aging: a Literature Review
  • Effect of spiritual well-being on end-of-life despair in terminally-ill cancer patients
  • Construção de Uma Escala de Avaliação de Espiritualidade em Contextos de Saúde
  • Is there a process of spiritual change or development associated with ageing? A critical review of research