terça-feira, 6 de julho de 2010

UMA NOVA VELHICE FRENTE À SOCIEDADE

INTRODUÇÃO

Este trabalho tem como alicerce o artigo “The New Aging: Self Construction and Social Values” da autoria de Kenneth J. Gergen e Mary M. Gergen (2000).
O tema central deste artigo baseia-se em torno de estudos feitos nos Estados Unidos, e por isso todos os dados mencionados referem-se a esse país, se nada for dito em contrário. O objectivo fundamental é descrever as principais alterações na sociedade americana e as suas implicações acerca da concepção do envelhecimento e da velhice.
De acordo com o texto, o conceito de velhice e de envelhecimento foi-se alterando, sendo acompanhado igualmente pela mudança de valores/padrões da sociedade americana. Desta forma, é, portanto, necessário que esteja patente ao longo deste estudo a noção de contexto cultural, assim como de conceitos não implícitos directamente no trabalho, tais como a despessoalização e a naturalização da velhice.

DESENVOLVIMENTO

De acordo com os autores, à medida que a sociedade vai sofrendo alterações, os valores também vão-se modificando, sendo uns alterados e outros abandonados. Deste modo, ao analisar-se um determinado valor tem que se ter em conta o contexto cultural e histórico, para que assim se possa compreender as diferentes contextualizações existentes, nomeadamente, da velhice e do envelhecimento.
Nos Estados Unidos da América, a Idade das Trevas foi caracterizada pela intensa descriminação dos idosos. Estes eram considerados inúteis, improdutivos, sem utilidade, passivos e mesmo decrépitos. Esta visão era universalizante retirando, por isso, a heterogeneidade característica deste grupo etário e apagando a complexidade que é o Homem. Tais caracterizações do último ciclo de vida do Ser humano relacionavam-se com valores como a individualidade e a produtividade. A noção de pessoa válida dependia, portanto, destes dois conceitos. A produtividade seria o valor através do qual, economicamente, uma pessoa produtiva era aquela que seria remunerada pelo que fazia, pelo trabalho desenvolvido, excluindo, desta forma, o idoso. Por outro lado, a individualidade baseava-se na noção de indivíduo livre, autónomo e independente, onde a pessoa válida seria capaz de fazer as suas próprias escolhas, decisões e estilos de vida. Mais uma vez, os idosos eram excluídos de tal valor devido a múltiplos factores nomeadamente físicos, psíquicos e económicos. De acordo com Bellah, Madsen, Sullivan, Swindler e Tipton (cit. in Gergen; Gergen, 2000), este valor ameaçava as relações íntimas, tanto em comunidade, como na família. Os valores individualistas exerciam um duplo constrangimento para os idosos: por um lado, caso o status individual do idoso fosse ameaçado, este tornar-se-ia vulnerável a doenças e incapacidades e/ou perdendo o controlo do seu corpo; por outro lado, aqueles que permaneciam com o seu estado de saúde e económico estável, preferiam ficar sozinhos, separados geograficamente dos seus entes queridos, preservando deste modo, a sua individualidade. Os idosos, como não eram considerados pessoas válidas na sociedade americana, perdiam a sua capacidade deliberativa e entravam num chamado processo de despessoalização. A “despessoalização” é a designação do processo de fragilização dessa mesma capacidade deliberativa e da autonomia moral. Assim, motivada pelo processo de substituição social e pelo processo de declínio fisiológico a que o ciclo de vida nos obriga, verifica-se uma fragilização evidente dos alicerces que sustentam a noção de pessoa moral, isto é, a autonomia, a capacidade deliberativa, a liberdade, a independência, entre outros (Viegas, 1995). O processo de substituição social refere-se à perda de papéis que outrora eram desempenhados pelo idoso e que, actualmente, são desempenhados pelas gerações mais novas. De acordo com esta cosmovisão, assistimos, desta forma, à glorificação dos jovens pela sua vivacidade, inteligência e beleza, e à desvalorização dos mais velhos. Essa desvalorização dos mais velhos implicava o declínio do idoso e a valorização de valores como a inovação, a produtividade, a mudança, a autonomia e a independência. Deste modo, e contextualizando com outros trabalhos apresentados, poderemos ver que a glorificação dos mais jovens e a desvalorização dos mais velhos, fez-se verificar pela afirmação de um novo ethos social (Viegas; Gomes, 2007). Este caracteriza-se por um conjunto de valores como a produtividade, a mudança, a inovação, a autonomia e a independência, que norteiam a visão do mundo prevalecente em dada realidade social e em determinado contexto histórico.
As concepções da velhice e do envelhecimento são fruto de uma cultura num determinado contexto histórico. Noutros contextos, outras interpretações alternativas e positivistas da velhice são bem aceites. Uma concepção completamente oposta à da sociedade americana, onde se verifica a assunção dos jovens e a desvalorização dos mais velhos, é a relatada pelo antropólogo Shweder (1998). De acordo com observações feitas sobre o povo Gussi do Oeste do Quénia, este constatou que o declínio, não era visto como algo cruel do envelhecimento, que deveria ser colocado de parte, mas pelo contrário, a pessoa passava a ser vista com respeito, obediência, prestígio e com estima social.
Assim, a visão da velhice e do envelhecimento como uma deterioração do funcionamento físico e psicológico provém de um domínio particular de valores, conjuntos de suposição ou mesmo de modos de falar. Deste modo, as concepções da velhice e do envelhecimento são construídas culturalmente.
Existe uma tendência bastante ampla nas ciências sociais e biológicas para a pesquisa do curso de vida naturalizado, ou seja, uma perspectiva de vida sob um desenvolvimento inato e com um progressivo declínio das capacidades humanas, tendências e propensões ao longo do curso de vida. Em 1988, Dannefer (cit. in Gergen; Gergen, 2000) definiu a naturalização como sendo um mecanismo efectivo de legitimação social, pois é difícil visualizar as concepções da velhice e do envelhecimento fora do domínio da natureza. Assim, quando afastamos o nosso pensamento de uma concepção da velhice naturalizada, conseguimos observar toda uma panóplia de transformações culturais. Esta naturalização é uma categoria cognitiva através da qual compreendemos e interpretamos o mundo, tendo implicações na marginalização, na criação de estereótipos, universalização e na legitimação da ordem social. A naturalização impede, assim, a visualização da multiplicidade de experiências e vivências de idade. Esta visão naturalizada da velhice como sendo algo eminentemente negativo assenta em duas suposições: por um lado, a suposição de que na velhice se perdem papéis sociais (perda de papéis sociais e de reconhecimento do idoso por parte da sociedade); por outro, a suposição de perda de controlo do corpo (ideia pela qual desenvolvemos o idoso como prisioneiro da sua própria biologia).
Mas, actualmente nos E.U.A., a época da Idade das Trevas regida por valores como a individualidade, a produtividade, a glorificação dos jovens, a desvalorização dos idosos e a naturalização da velhice foi sendo abandonada, segundo os autores. Inicia-se, assim, uma nova era de mudança, dando origem a uma nova concepção de envelhecimento. Tal facto deve-se fundamentalmente a três causas: factores demográficos, económicos e tecnológicos. Para além dos factores demográficos referidos no texto, nomeadamente, o crescimento da população acima dos 60 anos (devido à melhoria das condições sanitárias, à equidade no acesso aos serviços de saúde, à melhoria da alimentação), o aumento do estado de saúde e da longevidade, e o aumento da taxa de natalidade, há que ter em conta igualmente o aumento sucessivo do potencial poder político que a população idosa exerce na sociedade. Assim, a população idosa, para além de mais numerosa e activa, está a tornar-se igualmente organizada, sendo actualmente apoiada por uma Associação Americana de Pessoas Aposentadas reconhecida como uma das principais vozes para a vida política. Por sua vez, os factores económicos referem que o poder económico dos idosos tem seguido a tendência crescente do seu progressivo aumento. Em 1960, nos Estados Unidos, a pobreza registava-se maioritariamente entre a população idosa, mas com o aumento sucessivo do valor das reformas, este panorama tem vindo a ser alterado. Por último, o factor tecnológico também usufruiu de uma importância no desenvolvimento de uma nova concepção da velhice. As inovações que foram obtidas no século XX, tais como o telefone, o computador, a Internet e o GPS aplicados em contexto diário, permitem que o indivíduo esteja em permanente contacto com a sociedade e com o mundo em qualquer altura. Apesar de alguns idosos ainda não se encontrarem familiarizados com algumas destas inovações tecnológicas, começam lentamente a aperceber-se quais são os seus potenciais e vantagens, sendo promovido junto desta população a informação e a formação acerca destas inovações. De notar, igualmente, que este factor tecnológico permitiu não só reforçar relações antigas, como também criar novas relações. Mas ao analisar mais pormenorizadamente este factor, poderemos constatar que o seu acesso e domínio, assim como o factor económico, são altamente selectivos, o que pode originar desigualdade social nas experiências sociais do envelhecimento. Na perspectiva dos autores, estes factores proporcionaram a reconstrução do conceito de velhice. Nesta nova imagem, os idosos já não são vítimas de uma visão tão negativa, alterando o carácter de uma sociedade.
Como alguns padrões da sociedade alteraram-se, foi possível a construção de uma nova concepção de envelhecimento, que se baseia em três imagens distintas que têm diferentes implicações sociais e culturais para o futuro. Estas imagens são denominadas de “tipos ideais”, apenas porque são visões idealistas do processo de envelhecimento e, portanto, na realidade, elas não poderão ser tão bem delineadas como parecem. Estes modelos, apesar de concederem diferentes construções da velhice e do envelhecimento, podem ser conjugados para o usufruo das pessoas. Podemos distingui-los, entre construções que surgem do modelo da “Juventude eterna”, do modelo da “Capacitação” e do modelo “Epicurista”. Estes modelos, apresentados pelos autores, referem-se a questões fundamentais sobre as transformações sociais e culturais que afectam em particular as condições das pessoas idosas e as suas próprias experiências. O modelo da “Juventude eterna” é a forma mais profunda da reconstrução da velhice, derivando da duração binária do “velho/antigo” Vs “novo” e o privilegiar do último sobre o primeiro. Com o receio de não ser mais jovem, a imagem de corpo envelhecido é alvo de reconstrução, para que haja a manutenção de um corpo jovem. Não só aqueles que têm 60 ou mais anos, mas também os de 30 ou 40 anos, procuram iniciativas em crescente expansão como eliminar os cabelos brancos, combater a gordura e a celulite localizada, o cabelo grisalho, as varizes, os dentes amarelecidos, as rugas de expressão. Esta procura da manutenção do corpo esbelto é incentivada pelos múltiplos apoios que oferecem serviços a todos aqueles que queiram eliminar as suas marcas físicas do envelhecimento e que tenham um poder económico sustentável. Assim, esta re-descrição da velhice é conseguida através da reconstrução dos seus corpos e da negociação dos seus marcadores e ritmos de envelhecimento, passando assim a ser um processo em aberto, negociável e que pode ser retardado. Se as características do corpo forem os únicos parâmetros de reconstrução, o envelhecimento adia-se, mas não é re-descrito nem adquire novos significados. (Viegas; Gomes, 2007). Essa re-descrição passa, então, pelas dimensões mentais, comportamentais e relacionais.
Mas, nem todas as pessoas seguem este padrão orgulhando-se das marcas da sua vivência ao longo dos anos, exibindo-as com vaidade. Esta segunda tendência consiste numa glamorização da velhice, onde se assiste a um exibicionismo de vestígios e marcas de uma beleza tradicional para definir a idade. A título de exemplo da glamorização da velhice com efeitos bastante rentáveis no mundo do mercado é a venda mais atraente, por rostos mais velhos, de determinados produtos, como vinhos, diamantes e mesmo relógios. Em toda esta glamorização da velhice presente neste modelo há que ter em conta os efeitos patológicos do envelhecimento que produzem incapacidade, e portanto, não são possíveis de serem eliminados. Apenas os marcadores físicos que não apresentam, por si só, efeitos incapacitantes é que poderão ser alvo de uma reconstrução do corpo e de uma negociação de marcadores e ritmos de envelhecimento.
Outra concepção de envelhecimento que surge na Nova Era da Velhice é o modelo da “Capacitação”. Os investimentos culturais em valores, como a individualidade e a produtividade, presentes na noção de pessoa válida na Idade das Trevas, ameaçavam os idosos com perdas profundas na sua auto -estima: não tinham um controlo das suas próprias vidas, nem do seu mundo laboral. Com a saída do mercado de trabalho através da reforma, a pessoa iniciava o seu processo de despessoalização, perdendo o atributo de pessoa válida e passando a ser visto de um modo muito pernicioso. Contudo, o aumento do poder económico, e uma maior capacidade de organização entre as pessoas idosas, gerou movimentos de negação de uma imagem alternativa da velhice, e uma aceitação de uma imagem mais positivista, onde os idosos são mais activos, com dinheiro, e que continuam a querer aprender, daí o aumento exponencial das UTI’s. Uma das formas mais visíveis deste controlo sobre o corpo é o poder que se ganha sobre a morte de acordo com a vontade do idoso pois, tanto se tem em vista o adiamento da morte, como o precipitar da mesma, causando-a. No prolongamento da vida, existem variadíssimas estratégias para adiar a morte (programas de exercício físico, regimes nutricionais, produtos farmacêuticos), mas esta, é ainda inevitável e, portanto, não se consegue ter um domínio total sobre ela. Ao invés, a precipitação da morte (medo da dor, declínio biológico, consequências das doenças crónicas) pode-se verificar, por exemplo, através da eutanásia. Estes exemplos servem para repensar o modo como se vê o envelhecimento. Este modelo definido pelos Gergens baseia-se num conceito mais amplo de produtividade. Este não abarca unicamente o que é remunerável, mas também todas as actividades desde a doméstica, ao cuidar dos netos para que os filhos possam ir trabalhar. Contudo, com recursos económicos, disponibilidade e mesmo sentimentos de companheirismo pode-se gerar um reconhecimento pela sociedade.
Duas destas reconstruções visíveis são a da sabedoria figurada e a de testemunhas históricas. A população idosa carrega as suas histórias passadas, que são individuais, e que dizem respeito a cada um. Assistiram a marcos importantes da história, podendo contar o lado que não aparece, nem nos livros, nem nas revistas. Não só veiculam o seu testemunho pessoal do passado como também são símbolos de épocas importantes, acontecimentos, estilos de vida. Podem assumir, portanto, um novo papel social que mais nenhuma etapa da vida poderá assumi-lo, o de testemunhas históricas, mantendo ao mesmo tempo, o passado vivo através de recordações de memórias. Deste modo, este modelo proposto tem como objectivo contrariar os processos de despessoalização que afectam os idosos de maneiras diferenciadas, encontrando formas que possibilitem a emancipação dos indivíduos, colocando-os em arenas sociais significativas, seja mediante o trabalho (ex. segunda carreira), seja através do voluntariado, permitindo o envolvimento activo na comunidade, seja através do lazer ou do consumo (Viegas; Gomes, 2007). Para tal, é necessário que se verifique o alargamento do conceito de produtividade para além da esfera do trabalho remunerado. Por fim, podemos constatar que o modelo da “capacitação” relaciona-se com o ethos do novo, pois os idosos estando actualizados pelas TIC e integrados socialmente, estarão a enfatizar qualidades que são descritas na juventude como a força, a vitalidade, a produtividade, sendo colocados numa esfera social de identidade e desempenhando valores morais que caracterizam o ethos do novo.
Por fim, o último modelo de reconstrução da concepção da velhice é designado por modelo do “Epicurismo”, onde o prazer é visto como a sua prioridade. Devido, em parte, ao aumento do poder económico, à saúde biológica e à tecnologia, os idosos podem aproveitar as horas vagas para as mais variadas actividades. Assim, actividades como viagens, cruzeiros, teatros, concertos, golfe, ténis, pesca, mergulho, barco à vela, cartas, malha, programas específicos para idosos, retiros, e mesmo meditação podem ser usufruídas pela população idosa. Mas, para que isto seja possível é também necessário um bom suporte económico, uma boa saúde física e mental e disponibilidade, não estando, portanto, acessível a qualquer pessoa. Relacionando o ethos do novo com este modelo, podemos verificar que o idoso que segue esta reconstrução identitária, participa nas grandes tendências da sociedade (consumismo, actividades lúdicas, aproximação do jovem com aventuras), aproximando-se, desta forma, da sociedade.
Assim, podemos ver que estes três modelos apresentados pelos autores são formas de re-descrição do envelhecimento num ethos contemporâneo (visão do mundo prevalecente), onde recupera algumas das tradições renascentistas: a Revalorização da longevidade saudável (Viegas; Gomes, 2007). Apesar destes modelos apresentados pelos Gergens para um envelhecimento activo não se encontrarem ao dispor de todos, podemos verificar que contribuem para uma desconstrução de assunções e imagens negativas sobre o envelhecimento e a velhice.
Ao longo da análise do texto, verificou-se, inicialmente, a visão dos idosos pela sociedade como sendo decrépita e inútil, e a importância que os valores culturais, condições económicas e a vida institucional tiveram na Idade das Trevas. Contudo, esta mesma época foi um período de transformação da velhice derivada de uma matriz cultural da Idade das Trevas. Esta idade, actualmente, está a acabar e uma nova Era surgiu onde se dá a importância a novos valores, actividades com sentido e novos conceitos de idade.

CONCLUSÃO

A população envelhecida tem vindo a sofrer múltiplas alterações, não só devido a factores demográficos, como também económicos e tecnológicos, que lhes permitiram integrar-se na comunidade sem serem alvo de estereótipos e marginalizações. Nesta nova concepção do envelhecimento, presente na Nova Era da Velhice, surge a reconstrução identitária através do prazer nas actividades, do auto-controlo na vida, de uma jovialidade da velhice, do reconhecimento dos idosos como sendo testemunhos históricos que vivenciaram marcos importantes na história e valores da sociedade, e do usufruo da sabedoria dos quais os idosos são portadores, podendo transmiti-la às gerações precedentes. Apesar destes modelos apresentados pelos autores Kenneth J. Gergen e Mary M. Gergen serem um ponto fulcral para uma mudança social e cultural da sociedade americana, não consideram, contudo, as influências negativas que estes possam causar, como a marginalização e a descriminação. Para além disso, como refere Martha B. Holstein (cit. in Holstein, 2000) é pouco notório o afastamento dos valores dominantes característicos da “Idade das Trevas”, argumentando, assim, que o surgimento da Nova Era da Velhice é uma hipótese para um envelhecimento futuro, aparecendo como uma forma de mudança da sociedade e dos valores que lhes estão associados.

BIBLIOGRAFIA

GERGEN, K. J.; GERGEN, M., – The New Aging: Self Construction and Social Values. In K.W. Schaie; J. Hendricks (org.), “Evolution of the Aging Self. The social impact on the aging process”. NY: Springer Publishing Company, Inc (2000).
HOLSTEIN, Martha B.,– The New Aging: imagining alternative futures. In K.W. Schaie; J. Hendricks (org.), “Evolution of the Aging Self. The social impact on the aging process”. NY: Springer Publishing Company, Inc (2000).
VIEGAS, Susana, – «Enigmas: A Experiência Social do Envelhecimento»; Coimbra: Universidade de Coimbra. (1995).
VIEGAS, Susana; Gomes, Catarina Antunes, – As imagens conflituantes da velhice. In Susana de Matos Viegas; Catarina Antunes Gomes, «A identidade na velhice». Porto: Ambar (2007).
VIEGAS, Susana; Gomes, Catarina Antunes, – Envelhecimento Activo e a modalidade heróica de envelhecimento: ressonâncias e dissonâncias. In Susana de Matos Viegas; Catarina Antunes Gomes, «A identidade na velhice». Porto: Ambar (2007).

quarta-feira, 24 de março de 2010

ESPIRITUALIDADE E SUA INFLUÊNCIA NO PROCESSO DE ENVELHECIMENTO

INTRODUÇÃO
O processo de transição demográfica em Portugal e um pouco por todos os países desenvolvidos caracteriza-se pelo crescimento exponencial da população adulta e idosa, alterando a pirâmide populacional dos seus países. Actualmente o grupo etário dos idosos lidera o crescimento, facto que, até aos anos 60, este era idêntico nos vários grupos etários. Segundo o INE, a evolução registada entre 2004 e 2005 na estrutura etária da população residente em Portugal (incluindo a região autónoma da Madeira e dos Açores) revela o acentuar do envelhecimento da população, com a relação entre a população idosa e a população jovem a atingir em 2005, os 110, ou seja, mais um idoso por cada jovem em relação ao ano anterior. Este comportamento do índice de envelhecimento advém da diminuição do número de jovens e do aumento do número de idosos, tendo em consideração o decréscimo da taxa de natalidade e o aumento da taxa de emigração. A transição que vivenciamos foi acompanhada lentamente por uma maior qualidade de vida devido à melhoria das condições sanitárias, médicas, alimentares, assim como a apropriada inserção das pessoas no mercado de trabalho.
O idoso actual é social e culturalmente mais exigente que o idoso de outros tempos, onde a própria sociedade não exigia tanto uns dos outros. Assim para estabelecer uma “ponte de amizade” e suporte emocional ao idoso, este refugia-se em toda a esperança que o ajudou e continua a ajudar a potenciá-lo. A crença numa religião ou a fé e mesmo a prática da espiritualidade, não são simplesmente uma “dimensão do mágico” que substituem a responsabilidade humana. Na pessoa idosa, com todo o riquíssimo património cultural adquirido com as suas experiências da vida e sabedoria, o futuro adivinha-lhes “incerto”, levantando-se à procura incessante de segurança, disponível na sua orientação espiritual e/ou religiosa.
Com este trabalho pretendo portanto alertar para o benefício de uma orientação espiritual no desenvolvimento de um processo de envelhecimento enriquecedor. Assim os objectivos traçados que combinam o mundo espiritual e o mundo científico são essencialmente: perceber o fenómeno religioso e espiritual como forma de resposta às questões existenciais do Homem, sensibilizar para a importância da religião e/ou da espiritualidade enquanto paradigmas incontornáveis; procurar perceber a mentalidade do idoso face à religião e à orientação espiritual e compreender os benefícios da prática da espiritualidade em contexto hospitalar. Desta forma, tentarei alertar para a necessidade de uma prática holística de cuidados de uma equipa multidisciplinar, tendo em conta as diversas dimensões que nos constituem como indivíduos (biológico, social, psicológico e espiritual) e não ter em conta só a parte biológica que se multiplica em práticas de saúde.

DESENVOLVIMENTO

PARTE I: A ESPIRITUALIDADE E A RELIGIÃO

Abordagem ao conceito de Religião e Espiritualidade
O termo “religião” e “espiritualidade” são frequentemente utilizados, sem razão, como sinónimos. Convém, pois distinguir estas duas noções. Desde sempre que a religião tomou a sua influência na esfera social, quer ao nível pessoal como também público, tanto por existência ou inexistência. De facto, as características de uma sociedade que apresente uma qualquer forma de adoração do divino divergem fundamentalmente daquela que não possua religião. Actualmente, existem muitas religiões e mesmo seitas que promovem a elevação e a pacificação do Ser mais intrínseco da pessoa, influenciando a vida social e política. Os conflitos étnicos, por exemplo, geralmente têm conotação religiosa. Na Irlanda do Norte a ruptura entre católicos e protestantes não foi ainda recomposta e uma guerra pode ser também legitimada em nome de uma verdade religiosa. Por outro lado, são as religiões que concentram na sua maioria, entre os seus adeptos, verdadeiros heróis modernos na defesa da vida, na busca dos direitos humanos e na promoção da paz entre os povos.
Apesar do avanço da ciência, da técnica, da robótica, da informática, e de muitas outras áreas, continuamos a questionar acerca dos benefícios da crença em algo superior, num Deus ou na prática espiritual como seres multi-facetados que somos. A religião não é apenas um fenómeno individual, mas também um fenómeno social e cultural, que orienta a sociedade segundo as directrizes por ela traçadas, representando as respostas que a Humanidade tentou dar face às perguntas, através de um conjunto de práticas e de crenças.
Se algumas pessoas, no limiar da morte, encontram um grande amparo na fé religiosa, se as orações e os sacramentos ajudam, a verdade é que nos deparamos muitas que não têm religião, ou que vivem uma relação difícil, cheia de cólera ou de culpabilidade, com a sua religião de infância. Estas pessoas têm, não obstante, uma espiritualidade.
Assim como a religião, também a dimensão espiritual é uma dimensão importante na existência do Ser humano que dá abrigo às suas mudanças interiores, permitindo o aprofundar do seu sentido de vida. Esta pertence a qualquer Ser que se questiona perante a simples realidade da sua existência. Ela tange a sua relação com os valores que o transcendem, seja qual for o nome que lhes seja atribuído. Desde que os seres humanos apareceram na face da Terra e começaram a organizar-se na sociedade, que algum indivíduo do grupo assumia as funções de xamã ou feiticeiro. Durante muito tempo, espírito e corpo eram vistos como uma unidade, e esses líderes espirituais ensinavam que cuidar do espírito era a parte mais importante do tratamento.
De acordo com a Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos da UNESCO, de 2005, “a identidade de um indivíduo inclui dimensões biológicas, psicológicas, sociais, culturais e espirituais”. Também a espiritualidade constrói-se e relaciona-se em contextos socioculturais e históricos, estruturando e atribuindo significado a valores, comportamentos, experiências humanas, e por vezes materializa-se na prática de um credo religioso. Esta dimensão é considerada por muitos autores e mesmo pelo Ministério da Saúde como parte integrante do conceito de saúde, sendo essencial na prática holística de cuidados. De facto, a dimensão espiritual é descrita como sendo relevante na atribuição de significado ao sofrimento decorrente de uma doença crónica e também como recurso de esperança face às mudanças no estado de saúde.
A participação religiosa e a espiritualidade parecem relacionar-se assim com uma melhor saúde, uma expectativa de vida mais prolongada, uma melhor aceitação da morte e dos lutos, uma diminuição do nível de ansiedade, assim como, uma diminuição de tendências depressivas e suicidas. De salientar que apesar do conceito “religião” e “espiritualidade” serem diferentes, a religião pode ser um caminho para uma espiritualidade e uma boa saúde, mas isso não é uma regra. Assim, a adesão a uma crença religiosa pode ser uma forma de vivermos a nossa espiritualidade, mas também podemos viver a nossa espiritualidade sem religião. Depende de muitos factores, inclusive do nível cultural e da capacidade de se concentrar nas actividades espirituais.

Religião e Fé
As raízes da religião encontram-se na razão humana simplesmente. Ela faz apelo às outras fontes. Oriunda do verbo latino religare, que significa atar, unir, a palavra religião significa o acto de relegar o mundo visível com o mundo invisível, onde estão forças poderosas e misteriosas. A religião pode também ligar os seres humanos entre si, num grupo, propondo-lhes leis e valores comuns, dando-lhes um modo de crer e de agir.
É necessário, ainda, que se distinga religião de fé. A fé é a crença e a aceitação de um Ser transcendente e sobrenatural. Todavia, existem religiões que não se baseiam numa fé, como é o caso do budismo antigo. Portanto, pode haver religião sem fé, mas uma fé quase sempre se expressa num tipo de religião ou de religiões. Sob o ponto de vista de Immanuel Kant, aduzindo ao pensamento humano, afirma a existência de duas formas de religião bem definidas, alicerçadas nos interesses dos fiéis e de seus líderes: a religião da petição de favor organiza-se visando favores da divindade, não possuindo dinâmica engrandecedora para a criatura; Segundo Kant, a partir dessa modalidade religiosa, surge a fé dogmática, na qual não se exige a reflexão do fiel, mas a sua adequação mental, tendo como moldes as "verdades" estabelecidas por seus condutores; Por outro lado, a religião moral que prioriza a boa condução na vida, prescrevendo o indivíduo a tornar-se melhor. Nesse campo religioso, de antemão, se concebe um Deus que auxilia, mas ao fiel cabe empreender esforços para fazer-se merecedor da ajuda celeste. Fruto da religião moral, a fé que reflecte opõe-se à fé dogmática, prezando o Ser na sua capacidade de discernir, nunca ferindo o seu livre arbítrio, facultando-lhe o crescimento e a libertação perante as amarras da vida.

Benefícios da Espiritualidade
No fim do século XVIII começa a surgir a ciência médica, que cria uma divisão entre aquilo a que se chama de crendices e actividades “não científicas” e as explicações racionais e exclusivamente materialistas do novo conhecimento. À medida que a medicina evoluiu como ciência procurou distanciar-se sucessivamente do passado comum com a espiritualidade. Só nos últimos 10 anos é que surgiram evidências que os primeiros médicos tinham razão.
De acordo com Venâncio Pereira Dantas Filho, médico neurocirurgião, a espiritualidade envolve desde as concepções e convicções religiosas relacionadas com a vida, a doença e a morte, bem como os rituais associados, até a visão que valoriza a integridade da pessoa incluindo os seus aspectos biológicos, psicológicos, sociais e espirituais. “ Entende-se hoje cada vez mais que os problemas existenciais, que têm como pano de fundo a questão do sentido da vida, portanto, questões também de ordem espiritual e religiosa, estão associados senão com todas, pelo menos com a grande maioria das doenças psicossomáticas que acometem as pessoas e todo o mundo” afirma Dantas Filho. Aqueles que reconhecem a espiritualidade como um esforço humano para auxiliar o tratamento, sugerem que as evidencias dos estudos científicos recentes são interessantes o suficiente para justificar novas pesquisas. “ Os efeitos da espiritualidade sobre a saúde podem envolver mecanismos fisiológicos úteis além dos nossos conhecimentos actuais que, com o tempo, possam vir a ser entendidos”, acredita o autor acima citado. Muitas proposições terapêuticas para o tratamento de doenças já incluem a espiritualidade, particularmente na forma da meditação, e também como tratamento adjuvante ou alternativo para, pelo menos, diminuir a ansiedade, aliviar preocupações, dar conforto e motivação, tanto a nível domiciliar como hospitalar. A maioria dos estudos realizados acerca desta temática tem mostrado que também tem influência na diminuição de tendências depressivas, no aumento do sucesso de fertilização “in vitro”, na melhoria do curso clínico de doenças crónicas como diabetes e artrite reumatóide, na expectativa de vida prolongada, na auto-estima, no apoio emocional, esperança, bem-estar psicológico e interpessoal, ou mesmo no auxílio da recuperação de pacientes com dependência química, como por exemplo, casos de alcoolismo.
“Conhecer melhor as convicções das pessoas inclusive as de cunho religioso, fornecem mais recursos para lidarmos com novas situações que deparamos frequentemente e podem-se tornar bastante conflituosas”, completa ainda o médico neurocirurgião.

PARTE II: OS IDOSOS FACE À ORIENTAÇÃO ESPIRITUAL

Os carismas da velhice
O grupo formado por aqueles chamados da “terceira idade” abrange uma extensa faixa da população mundial: pessoas que saem dos ciclos de produção, tendo ainda grandes meios e capacidades de participação no bem comum. Ao numeroso grupo dos “Young old” (“jovens anciãos”, como são definidos nas novas categorias da velhice, aqueles cuja idade vai dos 65 aos 75 anos) vem-se juntar o dos “Oldest old” (“anciãos mais velhos”, com mais de 75 anos) e uma quarta idade cujo número tem vindo a crescer sucessivamente.
O aumento da esperança média de vida, por um lado, e a diminuição taxa de natalidade por outro, causaram uma mudança demográfica, invertendo a pirâmide das idades, tal como se apresentam à cinquenta anos atrás: o número de anciãos em constante aumento e o dos jovens em diminuição contínua. A construção da desejada sociedade de múltiplas gerações só resultará se tiver, por fundamento, o respeito pela vida, em todas as suas fases. A presença de tantos anciãos no mundo contemporâneo é um dom, uma riqueza humana e espiritual. É um sinal dos tempos que, se for plenamente compreendido e acolhido, pode ajudar o Homem de hoje a reencontrar o sentido da vida que ultrapassa os significados que lhe são atribuídos pelo mercado, pelo Estado e pela mentalidade dominante.
A velhice é uma etapa da vida, que “oferece novas oportunidades de crescimento e de empenhamento”. A «gratuidade», «memória», «experiência», «interdependência» e «uma visão mais completa da vida» são os carismas da velhice, apontados por D. António Sousa Braga, que a sociedade deveria aproveitar. A entrada na terceira idade é “um privilégio, um dom, que importa fazer frutificar para bem de toda a comunidade”. Na medida em que, com o aumento da vida média, cresce a faixa dos anciãos, “é sempre urgente promover esta cultura de uma ancianidade acolhida e valorizada, não marginalizada”. E avança: “o ideal é que o ancião fique na família, com a garantia de ajudas sociais eficazes, relativamente às necessidades crescentes, que supõem a idade e a doença”. A terceira idade também é a idade da simplicidade e da contemplação. Os valores afectivos, morais e religiosos vividos pelos anciãos são um recurso indispensável para o equilíbrio das sociedades, das famílias e das pessoas.
Os idosos e a Orientação Espiritual
É normal termos medo da morte, mas enquanto que algumas pessoas, principalmente aquelas que estão mais próximas desta etapa, ficam muito ansiosas, outras não. De acordo com Goethe, “na mocidade o Ser humano vive através do corpo e, na velhice, vive, contra o corpo”. Com esta citação, podemos ver que potenciais e forças escondidas no Homem só começam a aparecer e a desenvolver-se quando as energias corporais começam a declinar. Uma das experiências mais encorajadoras e felizes nos idosos é a consciência exponencial no triunfo do espírito, ainda quando a força física os abandone. Nas últimas décadas foi dado um especial relevo ao Ser humano como um todo, incluindo a vertente biológica e psicológica, juntando as várias vertentes como partes de um mesmo processo. Mais recentemente deu-se conta de que as dimensões humanas necessitam de uma dimensão espiritual, não necessariamente de uma dimensão religiosa mas de uma explicação para o Ser humano, uma percepção de que está inserido em algo mais amplo que o simples quotidiano. Quanto mais satisfatória for a resposta que o indivíduo tem a essa busca espiritual, mais se sentirá tranquilo ao enfrentar a morte. Todo o Homem confrontado com a iminência da morte pode ser levado a colocar a si mesmo questões de ordem espiritual, nomeadamente o sentido da sua existência.
De acordo com alguns especialistas, de uma maneira geral as pessoas interpretam todos os acontecimentos da sua vida sob uma visão espiritual e conhecer e respeitar esta interpretação é um grande auxílio para o doente e para o profissional que o assiste. Por isso, assistir espiritualmente bem o paciente é de grande contribuição para a sua recuperação ou tranquilidade.
Desta forma podemos inferir algumas características para uma espiritualidade na terceira idade: a assistência religiosa de forma a ajudar a descobrir os valores humano-religiosos da sua idade e a viver esse tempo com serenidade e com dignidade; o optimismo e o realismo onde podem encarar a realidade com clareza, coragem e esperança; a contemplação onde se faz uma caminhada interior de reflexão; a celebração das alegrias que a fase do envelhecimento atravessa; a autocompreensão de forma a aceitar e ter a consciência do processo natural da vida; e a socialização, ou seja, o relacionamento com as várias relações construídas ao longo da vida.
BIBLIOGRAFIA SUGERIDA:
  • Spirituality and aging: the health implications of religious belief and practice
  • Spirituality and clinical care
  • Spirituality, Rehabilitation, and Aging: a Literature Review
  • Effect of spiritual well-being on end-of-life despair in terminally-ill cancer patients
  • Construção de Uma Escala de Avaliação de Espiritualidade em Contextos de Saúde
  • Is there a process of spiritual change or development associated with ageing? A critical review of research